domingo, 1 de março de 2015

O estado de alma de Lutero

 



A sua vocação



Nada apresentava o menino como sinal provável de chamado divino para a vida sacerdotal ou religiosa.

De estudante católico que era, sem traço algum capaz de distingui-lo, com temperamento colérico e irrequieto, repentinamente se resolveu a deixar o mundo e retirou-se ao Claustro.

A respeito de tão súbita resolução, correram diversas lendas que as modernas pesquisas históricas põem em dúvida ou desmente. Numa carta ao pai disse Lutero, certa vez, que o medo das “ameaças de morte” lhe arrancara uma “promessa involuntária”.

Houve quem procurasse saber a que ameaças ele se referia.

Cogitam alguns de assassinato; outros pensam em duelo; certos, de um raio que caíra ao seu lado, impressionando-o consideravelmente.

Tudo isso poder ser verídico, mas não convence.

Em certa ocasião, em palestras com amigos, o “reformador” se referiu a um desastre que com ele dera, quando acompanhado de um amigo, nas cercanias de Erfurt.

Fazendo exercícios com armas, ele feriu, sem o querer, a própria perna; tão abundante foi a perda de sangue que pensou chegado a hora da morte. Temendo o perigo, invocara a proteção da Santíssima Virgem, prece que repetiu depois.

Noutra feita Lutero disse que, ao regressar de uma viagem a Mansfeld, surpreendeu-o violenta tempestade; uma faísca elétrica lhe caiu aos pés, enchendo-o de pavor; nesta ocasião teria exclamado: Valei-me Sant‟Ana; quero ser monge. Teriam sido tais acontecimentos a causa da vocação de Lutero?

Se ele nunca tivesse pensado antes em seguir a vida monástica, por certo teria feito qualquer outra promessa; mas o fato de voltar o seu pensamento para a vida religiosa parece demonstrar que desde algum tempo nutria tal idéia, não correspondendo ao chamado do Alto por deficiência de coragem. Vendo-se em perigo de vida, julgou ser isto um castigo de Deus e prometeu realizar o que já considerava como vocação. Parece ser esta a opinião mais admissível.

Certamente Lutero fez logo o que prometera. Pela última vez reunião os amigos em festa íntima e, no fim, convidou-os a acompanhá-lo. Relutaram. Afinal o seguiram, conforme lhes pedira. Deste modo, a 16 de julho de 1505 Lutero ingressava no Convento dos Agostinianos em Erfurt. 

“Entrei para o Claustro, explica ele, porque estava desesperado de minha salvação”.


Ali a vida de nosso pretendente foi dividida entre a oração, o estudo da Sagrada Escritura e dos escritos dos santos padres.

Sua vida como religioso nada oferece digno de nota; pequenos fatos, no entanto, manifestam, vez por outra, o seu caráter inquieto, propenso sempre a excessos, parecendo considerar a Deus não como pai cheio de bondade, mas como juiz rigoroso.

A crônica dos monges do convento do Lutero refere que um dia, ao recitarem o ofício, ao ser lida no Evangelho a história do surdo-mudo possesso pelo demônio, de repente o nosso herói caiu no chão, e, em contorções horríveis, exclamou: Não sou eu! Não sou (o possesso) (Grisar 44).


Falando de sua vida monacal, disse ele certa vez: “Atormentei-me, rezei, jejuei, vigiei e tanto frio sofri que seria bastante para matar-me” (Grisar, p.57).  

Estes fatos todos revelam uma moléstia nervosa, histérica, ou grande desequilíbrio de consciência; no entanto, em tudo isso não viram os superiores impedimento sério para a vocação do jovem monge, e em 3 de abril de 1507 Lutero foi ordenado sacerdote na catedral de Erfurt, celebrando sua primeira missa aos 2 de maio do mesmo ano. Nesta ocasião, quando recitava a oração: Te igitur, no começo do Cânon, o neo-padre foi tomado de um tal medo de Deus, que teria fugido do altar, se o sacerdote assistente não o houvesse acalmado.

Em 1515, quando ao lado de seu superior assistia à procissão do Santíssimo Sacramento, tamanho pavor da proximidade de Deus o invadiu, que ele se pôs a tremer da cabeça aos pés (Tischreden W.;I. n. 137).


Lutero era sacerdote para a eternidade... e nada neste mundo ou no outro, seria capaz de apagar o caráter sacerdotal que em suas mãos devia ser um meio de salvação para muitos e não, como se tornaria em breve, um instrumento de perdição.

O estado de sua alma

(...)Examinando-se tudo atentamente, nota-se que a conversão de Lutero, conquanto se tenha como sincera de sua parte, não possuía fundamentos suficientemente sobrenaturais, para agüentar o peso de sua estado de sacrifícios preparativos à santidade. 
Ingressando no convento, o seu ânimo irrequieto achou neste ambiente, quanto nos múltiplos afazeres que o envolviam, uma preocupação para mantê-lo, relativamente à parte externa, na linha reta do dever. 

Mas o conhecido axioma – OMNE VIOLENTUM NON DURAT – achou em Lutero a aplicação cabal. Quis sair do mal e praticar o bem; faltando, porém, o apoio sobrenatural à sua resolução, este seu voluntarismo, redundando num esforço contínuo, se transformou, para ele, num jugo e num tormento. 

Esta oposição formal entre as idéias, ou tendências de Lutero, e o seu teor de vida, gerou nele um terrível escrúpulo, pelos modernos psicólogos denominado OBSESSÃO; estado de alma em mais comum do que geralmente se cogita, sobretudo entre estudantes e intelectuais.
Para disfarçar a sua realidade, empresta-se-lhe o nome benigno de neurastenia, nervosismo, mania; no entanto, fundamentalmente, não passa de uma verdadeira moléstia: a OBSESSÃO ou o ESCRÚPULO.

Ao começar manifestar-se, esta importuna impressão é mal e mal perceptível, não indo além de um abatimento que inquieta, de qualquer coisa obscura e AMEAÇADORA. Logo, porém, esta disposição se altera: o pavor se determina, a IDÉIA fixa aparece como fator principal e pesa sobre todas as deliberações da pessoa, influindo em sua vida afetiva, sobre tudo o que faz; num palavra, tal idéia IMPORTUNA E PACIENTE. 

Muitas vezes não ultrapassa os limites de um simples “talvez”, mas é uma dúvida inquietante a martirizar o doente; tal estado, afinal, assume, assim, pouco a pouco, aspecto de verdadeira loucura. 
 
Como efeito do fenômeno, o obsesso se vê assaltado de vacilações da mente, condenado a nunca encontrar certeza, exatamente nas questões que mais de perto lhe dizem respeito. Basta pretender ele uma coisa, para logo se lhe apresentarem as mais fantásticas indecisões, aborrecendo-o e impelindo-o a odiar o que mais amava e apetecia. 

 
Foi em conseqüência desta disposição, que Lutero viu nas moléstias que o atingiram, até em simples acidentes sem importância, tremendas ameaças e castigos de Deus. Isto nos revela a sua decisão repentina de se fazer monge. Desde então já ele era vítima de uma obsessão de cuja tirania inutilmente procurou safar-se. 

Estas ligeiras observações psicológicas acham confirmação plena nas palavras e nos gestos subseqüentes de Lutero, após a entrada no convento. Ouçamos algo de seus escrito de 1535, em Wittemberg, já ex-frade, no seu comentário à epístola aos Gálatas:

“Quando ainda monge, julgava-me perdido, sem salvação possível, sentindo, com tamanha violência, impulsos e atrativos pecaminosos e uma tendência acentuada à cólera, ao ódio e à inveja, contra um dos meus irmãos de hábito. Este mal se renovava continuamente, não podendo eu encontrar descanso. "

E prossegue:

“Ah! Se tivesse então compreendido a palavra de Paulo: ‘a carne luta contra o espírito e ambos se hostilizam mutuamente” (Erl. Com. In Gall. III); 

Tudo isso acentua sempre mais a grande desgraça do escrúpulo ou da obsessão a persegui-lo desde a Infância. 

Os escrúpulos de Lutero

Segundo vimos, nosso homem era nada menos que um escrupuloso e um obsesso pela idéia fixa do rigor de Deus. 
 
Desconhecendo a influência deste estado psicológico numa pessoa, os protestantes não o admitem em Lutero, e chegam a atribuir erradamente ao Catolicismo as mazelas todas do "reformador". É que, para eles, CHEFE tem de ser sempre o HEROI, cuja sede da verdade e cujos anseios de paz com Deus não encontraram na Igreja Católica possibilidade de serem satisfeitos. 

 
Aí estão, para atestar o estado anormal do espírito de Lutero, historiadores de renome, homens de primeiro valor, como Grisar, Denifle, Paquier, Duinster, etc. Otto Scheel, escritor protestante, atesta ter sido Lutero frequentemente repreendido durante o seu noviciado, porque, perturbando continuadamente, enxergava todas as coisas através do prisma dos seus escrúpulos, segundo os quais tudo era pecado. 

 
Qual a causa de tão aflitivo estado de alma? 

 
Simplesmente a falsa concepção de Lutero sobre a graça divina. Por certo ele aspirava gozar aquela paz e alegria infundida pela graça no espírito; não lhe era suficiente a certeza moral de estar bem com Deus; desejava obter uma prova sensível, esta consolação que, às vezes, Deus concede a algumas almas generosas e frequentamente recusa a outras. 

 
Superiores e mestres espirituais apontaram-lhe o erro. Tempo perdido. Lutero seguiu a sua própria idéia, a ninguém querendo submeter-se. 

 
Foram impotentes para remedial o mal as violentas práticas de mortificação a que de contínuo recorria. O defeito era de outras natureza, pois não passava de uma espécie de "ultimatum"! lançado à face de Nosso Senhor. 

 
Já Santo Agostinho se expressava admiravelmente a respeito: VIS FUGERE A DEO, FUGE IN DEUM - quem quiser fugir de Deus, nele se refugie. O pobre Lutero muito ao invés, parecia nunca haver sentido a doce e consoladora intimidade com Deus, lançando-se cegamente nas garras do demônio, quando era o seu lugar o regaço carinhoso do Pai. 

 
Em vista de tão lastimável estado, foi ele aos poucos abandonando as orações prescritas aos sacerdotes, e se absorvia, de corpo e alma, na atividade exterior, envolvente, materializante, e tanto que, em 1516, escrevia assim a Lange: 

 
"Raramente me sobra tempo para rezar o breviário e celebrar a missa; acrescentem-se a isto as tentações que padeço". (Wette I, 41).

Eis aí iminente a desgraça de Lutero. Era um vencido, a entregar as armas, capitulando vergonhosamente. 

 
O pobre monge começou, desde aquela hora, a indagar de si para si: por que não encontro eu a paz e a satisfação no convento? Por que me sinto hoje mais desanimado do que nos primeiros dias de noviciado? Após tantos esforços nada consegui. E se não me salvar no papismo, haverá possibilidade de algum outro o conseguir?... (Wachters; Luther, 46).

Perante seu espírito turbulento e povoado de revolta surgiu então o fantasma do erro. Veio em seguida a indagação: Não haverá na natureza humana um foco de inclinações perversas, mais pujante do que a nossa vontade, o qual nos consome, sendo-nos impossível apagar-lhe as chamas? 

 
E, dando ouvidos ao seu caráter voluntarioso e às idéias pessoais, concluiu afinal: "A natureza humana está corrompida pelo pecado original, até às últimas fibras, e o desejo do mal é invencível". (Jaques Maurtain: Trois Refomateurs 1925). 

 
Era a irremediável, a heresia formal. Destarte se estabeleceu a fonte de todos os seus erros e culpas. O desastre teve como ponto de partido o escrúpulo, a obsessão, o medo de Deus, a rebelião contra tudo e contra todos. E tal espírito doentio jogou-o no abismo. Sabe-se aliás, que um escrupuloso, de um dia para outro, pode cair no excesso oposto ao de seu escrúpulo. Para muitos tal disposição conduz a um laxismo corruptor. Para Lutero, porém, levou-o à fundação de uma nova seita religiosa.


Lutero se pervertera, pois, de corpo e alma. Desde então era um decaído, entregue ao vício, perdido em deboches. E, com pouco tempo mais, um revoltoso em franca rebelião contra a sociedade, contra a Igreja e contra Deus. 

 
Narrando este seu estado de ânimo, disse certa vez: "Todos aqueles aos quais eu comunicara o meu estado, me diziam logo: Não compreendo a sua dificuldade. E refletia: será que sou o único a debater-me em situação tão triste, somente eu é que sou tão tentado?... De fato, em toda parte eu via visões horríveis e aparências de fantasmas". (Hausrath: Luther leben, p. 30). 

 
Mesmo a confissão, que a todos os cristãos traz alívio e paz, veio a ser, para ele, uma fonte de tormentos. Desanimado, procurava recurso de salvação, sem lograr encontrá-lo. Lutero olvidara o doce Cristo que dissera: "Vinde a mim todos vós que sofreis a vos achais carregados, e eu vos aliviarei" (Mat XI, 28).;

O Jesus do tabernáculo, prisioneiro do amor, não era para ele mais do que um juiz encolerizado, sentando-se ameaçador sobre um arco-iris" (Wachters, p.44). 
 
Confesso-te, dizia a um amigo, ainda no mesmo ano de 1516, que a minha vida mais e mais se aproxima do inferno; torno-me sempre pior e mais execrável".(Enders I, 16).

Pouco tempo antes, (1515), comunicando seu estado de alma ao superior, Pe. Staupitz, revelou-lhe dolorosamente: "Sou um homem exposto e implicado na má sociedade, na crápula, nos movimentos carnais, em negligências e noutros incômodos a que se vêm juntar os do meu próprio ofício" (Wette I, 232). 

Tais palavras deixam entrever com clareza o que era no íntimo a alma de Lutero. Excessivamente orgulhoso a ninguém queria sujeitar-se. Em certos momentos, porém, por mais humilhante que tal se lhe afigurasse, escapava-lhe a confissão da verdade, quais as abafadas labaredas de um incêndio interior, forcejando evadir-se. 

Depois, qualquer ocasião favorável mudar-lhe-ia a obsessão em revolta externa a entregá-lo, acorrentado, ao domínio das paixões mais abjetas que não conseguira vencer, por desprezar os meios adequados, não renunciar às idéias fixas e esquivar-se à obediência. Convertera-se POR MEDO. E ainda o medo fá-lo-á depois cair no lamaçal do vício.
O amor para com Deus e as almas não lograra apossar-se de seu coração. E foi preenchido este vácuo pela rebelião, pelo rancor odiento e pelas baixezas carnais.

Não o impressionou em absoluto a bondade divina. Isolado, porém, na sua miséria, envolto na soberba, quis ditar leis ao próprio Deus e a ele se impor. Então Deus se afasgou do miserável que o repelira, deixando-o entregue aos instintos das próprio perversidade. 

Deus dá a sua graça aos humildes, mas resiste aos sobverbos (Pr 3,34). 

(Trechos do livro 'O diabo, lutero e o protestantismo', Pe. Júlio Maria)

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